E se parássemos de comprar em lojas de fast-fashion?
foto: DYLAN MYERS/@DYLANPMYERS
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E se parássemos de comprar em lojas de fast-fashion?

Por Bárbara Poerner

“A roupa mais sustentável é aquela que já existe”. Talvez você já ouviu essa frase. De fato, ela faz bastante sentido quando colocamos em questão o grande volume de roupas produzidas anualmente e os índices de poluição e exploração acoplados a isso: o equivalente a um caminhão de lixo têxtil é descartado no mundo por segundo (Fundação Ellen MacArthur), e a escravidão contemporânea percorre dos campos às passarelas, onde marcas de moda rápida (fast-fashion), como Zara, H&M e Topshop, já foram flagradas com esse absurdo na sua rede produtiva. O não-consumo e o boicote são então colocados como uma alternativa frente a uma indústria problemática.

Entendendo o jogo

O fast-fashion é um modelo de negócio regido sob três temporalidades: quanto, quando e como. Esse conceito é do economista Enrico Cietta, que em seu livro “A Revolução do Fast Fashion” (2012) apresenta o modelo como um sistema de oferta rápida de coleções, capacidade de antecipação, otimização, redução de riscos e sagacidade no lançamento. Em síntese, é um alto volume de produção, aliado à alta rotatividade e encurtamento da vida média dos produtos. 

Haja dinheiro para produzir tudo isso. E de fato existe, mas concentrado.

  • A fast-fashion holandesa C&A teve lucro líquido de R$19 milhões no terceiro semestre de 2019.
  • A Inditex, grupo espanhol do qual a Zara faz parte, lucrou 3,44 bilhões de euros no mesmo ano; Amancio Ortega, “dono” e fundador do grupo, é um dos homens mais ricos do mundo.
  • A irlandesa Primark teve rendimento de R$52 bilhões de reais apenas em 2019.

Uma equivalência rápida: se você recebe um salário mínimo brasileiro (2020), de R$ 1.045,00, teria que trabalhar mais de 650 anos para acumular um milhão.

Essas marcas costumam terceirizar e quarteirizar sua produção para outros países, como Índia e Bangladesh, onde podem pagar mais barato pela mão de obra e integrar o grande mercado competidor. Isso torna sua rede fragmentada e pouco (ou nada) transparente e segura, o que abre brecha para violações de direitos humanos, abuso e exploração - além de degradação ambiental.

Mas se então parássemos, hoje, de comprar roupas em fast-fashion?

Ninguém prevê o futuro, mas não precisamos ser videntes para descobrir o que iria acontecer: colapso. E para o elo mais vulnerável da rede produtiva da moda. A pandemia de coronavírus nos permite visualizar uma brecha do que aconteceria, se hoje, parássemos de comprar e as lojas de fast-fashion parassem de produzir. 

No início da pandemia, fábricas e lojas físicas fecharam por algumas semanas e em sinergia viram um mercado instável, diante de uma crise sanitária jamais presenciada, com sistemas econômicos desequilibrados. O rendimento caiu para muitas - embora algumas apresentem crescimento de vendas online -, mas a conta no vermelho chegou para as trabalhadoras e trabalhadores. Concentra-se o lucro, socializam-se as mazelas. 

Em território nacional, a maioria das trabalhadoras do vestuário é informal - aproximadamente 75%. É nessa realidade que reside a complexidade: muitas confecções tiveram pedidos suspensos, contratos não pagos, incerteza. Uma parte fez a transição para a produção de máscaras de tecidos e outros equipamentos de proteção individual, mas enfrentam a exploração. Uma reportagem de junho de 2020 da ONG Repórter Brasil revelou que costureiros e costureiras imigrantes, em São Paulo (SP), chegam a receber R$ 0,10 por máscaras que são vendidas a R$ 10,00.

Em Bangladesh, o segundo maior exportador de vestuário do globo, a conta que chegou é bilionária. Várias marcas de fast-fashion cancelaram pedidos em andamento ou já prontos. A Associação de Fabricantes e Exportadores de Roupas do Bangladesh (BGMEA em inglês) aponta que mais de 982 milhões de peças tiveram seus pedidos suspensos, totalizando um déficit de mais de US$3,18 bilhões e impactando 2,28 milhões de trabalhadoras e trabalhadores. Dentre as marcas que cancelaram pedidos está, por exemplo, a Primark. Sim, aquela mesma que faturou R$52 bilhões só em 2019. 

A campanha #PayUp surgiu como uma pressão para as marcas pagarem e não cancelarem seus pedidos. Desde seu início, algumas já se comprometeram mas muitas ainda relutam em fazer o mínimo. 

A baixa no consumo e a minimização das produções não gerou emancipação, mas sim agravou a situação de vulnerabilidade de trabalhadores e trabalhadoras não-brancas. Talvez, isso não acontecesse se elas tivessem seus direitos vedados, se houvesse uma distribuição de riquezas justa na indústria da moda e se o lucro não fosse prioridade eterna em um planeta finito. Mas, como ninguém é vidente, é só um talvez. 

Soluções superficiais para problemas profundos não existem

Consumir não é “errado”, tampouco um “crime moral”. Em qualquer sociedade existem formas de consumir. O problema é quando o consumo torna-se consumismo e passa a gerir nossa mentalidade de forma coerciva, tomando um lugar de “ter para ser”, e cooperando e criando mazelas sociais e ambientais.

Se colocamos lucro e acumulação acima da vida, que necessita de condições materiais para manter-se íntegra, é o que convencionalmente acontece. 

Se parássemos de comprar roupas hoje - em fast-fashion ou em qualquer lugar - muitas pessoas ficariam desempregadas e em situação ainda mais vulnerável, porque essa é a maneira que o sistema capitalista opera. É preciso mudar, além das formas de consumir, as formas de produzir e pensar, garantindo que pessoas sejam mais livres que mercados.

Isso não é um endosso ou justificativa para “sair comprando em fast-fashion”, tampouco para que o volume produzido deva ser mantido, ou ainda aumentado (na verdade, precisa ser reduzido drasticamente se falamos numa nova moda). Ainda, outros modelo de negócio também tem suas problemáticas, como o de luxo, e o Brasil tem suas peculiaridades. É mais um convite à reflexão: no sistema de moda atual, quem são os reais afetados pelas bandeiras que levantamos? 

O boicote, quando organizado sob pautas sólidas (como foi o caso do Breque dos Apps, por exemplo), pode ter sua eficiência. Mas boicote às fast-fashion, ou ao modelo atual de moda, também pode ser pesquisar e fortalecer as causas trabalhistas; valorizar os negócios locais de nossas comunidades; subverter nossa mentalidade quanto ao que é moda, entendendo que sua forma ultrapassa o campo material; cobrar que as marcas assumam suas responsabilidades, paguem salários justos, garantam condições dignas, etc.; reivindicar de políticos e Estado efetividade popular nas políticas públicas; organizar-se com movimentos ativistas alinhados com seu propósito... e outras tomadas de ação que podem ser feitas conforme nossa agenda. 

Crédito da foto de capa: DYLAN MYERS/@DYLANPMYERS

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