Uma revolução na moda precisa ter a raça como pauta.
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Uma revolução na moda precisa ter a raça como pauta.

Fevereiro de 2019: o universo da moda foi protagonista de mais um caso de racismo que eclodiu. A festa de aniversário de 50 anos de Donata Meirelles, diretora de estilo da Vogue Brasil na época, fomentou diversas reflexões acerca de raça e apropriação cultural, temas ainda discutidos insuficientemente no Brasil. Com um passado escravocrata, que completa apenas 131 anos de abolição em 2019, nosso país conserva um racismo estrutural e feridas coloniais que nos travam de interpretar o prisma social além da normalidade branca, o que evidencia como é urgente a tomada de uma postura antirracista no campo individual e coletivo.

No evento em questão, a ex-diretora, que pediu demissão dias após o ocorrido, posava ao lado de mulheres negras contratadas para a festa, de forma bem emblemática. A mesma afirma que a decoração remetia à Bahia e as referências eram do Candomblé. Porém, quem trabalha com imagem sabe que tudo tem uma simbologia e significado. Sendo assim, usar elementos da cultura negra e signos que remetam a uma herança colonial de casa grande como decoração não é homenagem. Tampouco foi sensacionalismo ou ingenuidade, mas sim um retrato de como grandes influentes do seio da moda ainda perpetuam o racismo.

Hoje, com manifestações nas ruas de coletivos negros e campanhas antirracistas em plataformas digitais acontecendo com mais vêemencia - muito por conta do estopim do assassinato de George Floyd, mas muito também pela dinâmica de morte racista que se revela todos os dias – podemos olhar para o passado e presente da moda com a certeza que seus grandes sistemas foram construídos à base de exploração de muitos grupos de pessoas e Natureza, e também de escravização de vidas negras.

Um exemplo é o algodão, fibra natural mais usada e produzida no mundo, que muito foi produto do sistema escravagista dos Estados Unidos no século passado: pessoas africanas eram sequestradas de seu continente para serem escravizadas em enormes plantações no Sul do país. Não precisando ir muito longe, as problemáticas da escravidão contemporânea ainda percorrem toda a cadeia produtiva da moda, dos campos à passarela. Basta racializar o debate e observar que são as pessoas não-brancas aquelas exploradas para produzir máscaras a 20 centavos em São Paulo, por exemplo. 

Para além do material: a moda que se apropria

Em paralelo com essas mazelas, também temos a necessidade de aprofundar o debate sobre as apropriações que a negritude sofre. Sua religião, cabelo e roupas são várias das manifestações que têm uma história de luta e resistência e vêm sendo cooptadas pela branquitude e pelo próprio capitalismo. Se tornou legal ser negro, sem ser negro.

A moda, então, que atua como uma expoente e uma reveladora dos espíritos do tempo e da humanidade, e faz parte da vida de todos os seres humanos e do planeta Terra em diferentes âmbitos por meio do vestuário e da indústria, alimenta e produz constantemente tais apropriações.

São várias as peças que são palco para o racismo na moda. A Vogue, citada no início, já teve esse crime na sua linha editorial, vide seu baile realizado há três anos com o tema “África”. Vale lembrar da estampa de uma mulher negra escravizada servindo sua sinhá, em uma blusa da marca Maria Filó no ano de 2016. Também podemos citar o tricô comercializado no site da Gucci, que personificava um blackface, ou um item extremamente caricato negro de uma coleção da Prada, ou ainda o desfile de 2013 do estilista mineiro Ronaldo Fraga, em que as modelos entraram com “bombril” imitando cabelos.

Ainda, quando se trata da apropriação cultural, realmente é impossível uma única pessoa esvaziar de sentido um objeto carregado de simbologias e história. Porém, ela pode ser totalmente capaz de reproduzir o racismo e corroborar para um sistema de exclusão constante. A discussão não transita no campo da pessoalidade, mas é um questionamento sobre um sistema e ideologias muito bem construídas – o racismo e branquitude.

Onde estão os negros e negras na moda?

Diante de tantas congruências entre raça e moda, surge a pergunta: além de casos isolados, onde estão os negros e negras na moda? Quantos estão à frente de marcas que têm visibilidade? Quantos falam em palestras sobre suas iniciativas? Sobre sustentabilidade? Em salas de aula? Realizam workshops? São chamados para estampar matérias? Poucos. Pouquíssimos. E não é porque não são capazes ou não têm iniciativas que mereçam narrativas, mas porque uma das facetas do racismo é excluir e não permitir nenhum tipo de história além da única que é contada – a da escravidão.

Sob a luz dessas perguntas podemos ver como, na moda ou em qualquer esfera, a opressão chega primeiro em quem já tem uma trajetória de exclusão. Quando tratamos de moda sustentável, torna-se ainda mais necessário trazer a lente racial para as interpretações e demandas. Se a sustentabilidade é também sobre emancipação humana e ambiental, sobre justiça e igualdade, porque ignoramos tanto as pautas raciais? É impossível se ausentar desse debate se falamos de revolução e é impossível sustentabilizar a moda se não superarmos o racismo.

Essas correntes que por muito prenderam negros e negras insistem em permanecer, de forma às vezes sutil, às vezes escancarada. O regime escravista não era apenas sobre o trabalho forçado, mas principalmente sobre arrancar a alma e esvaziar a humanidade do povo negro, tratando-os como meros objetos de trabalho sem qualquer emoção. Então, a luta segue um processo de humanização, onde todos os espaços devem ser ocupados e todas as amarras rompidas.

A responsabilidade da moda é canalizar sua força para que negros e negras deixem de ser marginalizados e possam contar outras histórias – por meio das roupas, do design, por meio do que quiserem. Sem vidas apagadas, trabalhos invisibilizados e narrativas condicionadas: a moda tem que ser uma ferramenta de emancipação, libertação, e, porque não, de sonhos e vislumbres de todos e todas.

barbara-poerner

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